Advogado, aquele que é chamado… se não estiver em “greve”
Quem abre o portal da Ordem dos Advogados depara-se com a contagem do tempo em que os honorários de quem participa no sistema de acesso ao direito e aos tribunais não são atualizados, sob um fundo preto.
A Ordem dos Advogados está em protesto contra aquilo que – quem não? – considera uma indignidade: a falta de atualização, por anos a fio, dos honorários dos que asseguram o sistema de acesso ao Direito e aos Tribunais. Até aqui só cabe discordar do montante da atualização que a Ordem pretende, que é, ainda assim, parco, já que o diploma que rege essa matéria está muito desconforme com o custo de vida e com o custo de funcionamento da atividade de advocacia num escritório. E, nem a Bastonária, nem alguns dos atuais membros da Direção da Ordem são novatos nestas andanças (embora gostem de dar a entender que sim, a verdade é sempre a mais bela das perspetivas). Alguns deles já cruzam a soleira da porta número catorze do Largo de S. Domingos há muito, muito tempo, quando integravam precisamente o Instituto do Acesso ao Direito (IAD). Ora, o referido Instituto do Acesso ao Direito (IAD) é uma estrutura de apoio ao Conselho Geral para enquadramento, qualificação e tratamento específicos de questões no âmbito do sistema do Acesso ao Direito e aos Tribunais e apoio aos Advogados que participam no mesmo. Portanto, teria sido de valor, desde então, rever, sob o ponto de vista técnico, e verter num documento estruturado, para enviar aos Conselhos Gerais de então, e subsequentemente aos Ministérios da Justiça, uma proposta de alteração, por via legislativa, adequada e consequente, que refletisse aquilo que são os honorários dignos e justos pagos por um serviço público de cariz social, com respaldo constitucional que está acometido à advocacia portuguesa, sendo essa função pública uma das mais relevantes de um Estado de Direito Democrático.
A atual Bastonária da Ordem dos Advogados “jurou bandeira” como vogal do IAD – Instituto do Acesso ao Direito – em junho de 2011 (sim, pasme-se o leitor, vem romper com o status quo quem há muito dele faz parte) e, assim, pelo menos desde aí, começou – esperava-se – uma intensa preparação para melhorar a situação do seu eleitorado, como fez e faz gala de propalar nas redes sociais através de um grupo, dividindo assim a advocacia entre a que está inscrita no SADT e tem uma Ordem para a representar e a que não está e, portanto, tem uma Ordem a quem paga quotas, em troca de um certificado e de um seguro.
É com espanto e perplexidade que agosto desponta e ouvimos anunciar uma medida de teor “grevista” às “escalas” dos Advogados nos Tribunais, proposta pela Ordem dos Advogados (que se travestiu de sindicato, atraiçoando a sua génese e a dos seus associados), pretendendo colocar toda uma profissão, que se reveste de interesse público e tem uma função social, a reivindicar direitos próprios à custa dos cidadãos mais carenciados. Sim, a cada vez que um cidadão não tem dinheiro para contratar um Advogado ou uma Advogada há um Advogado ou uma Advogada que está inscrito/a numa “escala” e que lhe é nomeado pela Ordem dos Advogados (a quem compete a gestão do sistema), atestando-se, assim, a idoneidade da nomeação e a qualidade do profissional que lhe vai prestar o serviço.
Com a medida proposta pelo Conselho Geral e pela Bastonária, é transferida a insatisfação, a angústia, a sensação de impotência e de injustiça, legítimas e mais do que justificadas, note-se, da Advocacia para cidadãos que enfrentam a Justiça e que carecem de Advogado e a Ordem dos Advogados está a incitar que os Advogados lhes voltem as costas. Voltar as costas a um cidadão, quando enfrenta a Justiça, não é coisa que se peça a um Advogado ou uma Advogada dignos desse nome.
A Ordem dos Advogados tem de ter capacidade de resolver os problemas nos gabinetes, com o poder político e não trazer os dossiers para a rua e, sobretudo, não utilizar a Advocacia como arma de arremesso. A administração da Justiça é algo extremamente sério.
Neste particular, a Bastonária começou a preparar-se em junho 2011 (foi a Bastonária que na história da Ordem mais tempo teve para preparar um dossier), estamos em agosto de 2024 e tudo o que há para apresentar à Advocacia Portuguesa é um “balão”, no site da Ordem dos Advogados, quando alguém tenta inscrever-se nas ditas escalas, com os seguintes dizeres:” A tabela de honorários no âmbito do SADT configura uma indignidade e um desrespeito pela Advocacia. Deseja prosseguir?”
O vocábulo Advogado deriva da expressão latina ad vocatus que significa “o que foi chamado”. Podemos não querer sujeitar-nos a uma tabela injusta, mas e se quisermos? Estamos apenas e só a ser ad vocatus!A Ordem dos Advogados não tem o direito de perguntar a alguém se “quer ser chamado”, se quer ser Advogado.
Nos anos em que estive na Ordem dos Advogados, apesar de ter lidado também com questões de apoio judiciário, exerci outras funções é certo, mas no âmago de Advogada, daquela que quer ser chamada a prestar socorro a quem o Estado português não remunera condignamente, ocorrem-me tantas outras soluções (e não tive 13 anos de preparação), mas nenhum é de pendor sindicalista, que o não sou. Sou empedernida profissional liberal.
Comecemos, então, pelo início: o Conselho Geral já partilhou com a classe e já a ouviu, sequer, quanto às propostas a enviar ao Ministério da Justiça? O Conselho Geral tem a certeza que já exauriu a via negocial? O Conselho Geral já equacionou examinar se o caso vertente cai, ou não, na facti species da omissão legislativa ilícita? Já recolheu pareceres de jurisconsultos de vulto (é para isso que pagamos quotas e é a isso que devem ser alocadas)?
O julgamento de Jesus de Nazaré foi lapidar: celebrizou-se por ter sido o mais injusto da história, pela circunstância de ter ocorrido num tempo em que não havia “escalas” e sem a presença de um Advogado. O Nazareno não teve garantias e não as teve porque não teve a quem chamar, não teve quem viesse em seu auxílio, quem as conhecesse e que pugnasse por elas. O processo penal que conduziu à condenação de Jesus Cristo, considerando as acusações contra estas formuladas à luz do Direito hebraico, por Caifás, o Sumo Sacerdote, foram: blasfemar, profanar o sábado e ser um falso profeta. Nenhuma das acusações foram provadas pelo Sinédrio, contudo a sentença foi pela condenação por blasfêmia contra Deus. Depois de condenado pelo Sinédrio, Jesus foi apresentado ao Governador de Roma na Judeia, de seu nome Pôncio Pilatos que, reunindo em si o poder de acusar e julgar, de acordo com o direito romano, lavou as mãos. A multidão, alheia ao direito e à Lei, pugnava pela execução. Contudo, as acusações do Sinédrio eram teológicas e não violavam o direito romano. Pilatos sentia-se pressionado, era necessário conseguir a condenação por crimes políticos, pelo que, surgiram prontamente novas acusações contra Jesus: não pagar tributos a Cesar, e a de ter-se, ele mesmo, proclamado rei. Ora, tal configurava um crimen laesae majestati. Mas só o crime contra a segurança do Estado, sublevação, rebelião e conspiração contra o Imperador de Roma, viriam a ser punidos com pena de morte, e Jesus foi acusado de ter começado o seu ato de incitamento desde a Galileia até Jerusalém.
O Julgamento de Jesus – o mais famoso, injusto e ilegal processo judicial – atesta que os poderes instituídos, quando não sindicados, podem torpedear a lei e condenar um inocente.
Teria sido assim se Jesus tivesse um Advogado, inscrito numa escala de prevenção? Seguramente não e não podemos correr o risco que outro – qualquer outro – julgamento ocorra sem um Advogado ou uma Advogada de escala, que possa ser chamado/a, por isso não “condene” a Ordem quem “clicar” OK na pergunta “deseja prosseguir”!
De resto, estamos todos e todas em protesto… há muitos, muitos anos.