“Mais uma Comissão para lamentar”
Os portugueses já se vão habituando – e até viciando – nas nossas célebres Comissões Parlamentares de Inquérito gizadas de modo a criar um desejo mediático e um voyeurismo inexplicável, sendo por outro lado parcas em conclusões.
No fundo vem sendo colocado, no nosso país, um mecanismo democrático que deveria ser utilizado pelo parlamento para investigar assuntos de interesse público ao serviço de exibições, mais ou menos conseguidas, dos deputados da nação.
E como são comissões temporárias, sucedem-se a propósito dos mais diversificados assuntos; e como são compostas por um conjunto de deputados que têm poderes para investigar, desde questões financeiras e administrativas até casos específicos que gerem controvérsia ou suspeitas de irregularidades e no âmbito das quais são convocadas testemunhas, são requisitados documentos e realizadas audiências públicas para obter informações diretamente.
É tudo tão aparentado com a justiça que o cidadão comum fica a pensar, equivocadamente, que numa comissão de inquérito se administra justiça pública.
Correm tantas vezes a par e passo com a administração de justiça, com inquirições longas e minuciosas de pessoas que estão a ser investigadas, mas cuja recusa em colaborar numa comissão parlamentar de inquérito pode redundar em crime de desobediência (de acordo com alguns entendimentos), já para não falar na óbvia e evidente leitura política.
Atualmente, na ordem do dia, em Portugal temos o caso que, na nossa opinião erradamente, ficou conhecido como o caso das gémeas luso-brasileiras. Trata-se de um caso que remonta a 2019, quando os pais das crianças tentaram obter um medicamento caro para tratar a atrofia muscular espinal das filhas e que envolve um alegado favorecimento no acesso a um tratamento médico e tem sido amplamente discutido na Comissão de Inquérito Parlamentar (CIP). A mãe das gémeas, Daniela Martins, foi ouvida e pediu desculpa por ter mencionado uma rede de influências para conseguir o tratamento para as filhas e negou qualquer ilegalidade no processo.
Mas este caso ganhou foros de maior gravidade e visibilidade dado o facto de o nome do filho do Presidente da República, Nuno Rebelo de Sousa, ter sido invocado e, assim, se envolvendo na polémica o filho do mais alto magistrado da nação. Com efeito, ironicamente, o seu filho é um dos investigados por alegada interferência no acesso ao tratamento. A investigação continua, e a comissão parlamentar de inquérito está a avançar, apesar e não obstante o processo judicial em curso.
Importa questionar a oportunidade de estes “dois rios” (a CIP e a Justiça pública) correrem em paralelo e simultaneamente.
A principal diferença entre uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) e um inquérito judicial reside na natureza e no propósito de cada um.
A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) é, por natureza, um órgão temporário, criado pelo Parlamento, com o propósito de investigar e apurar factos de interesse público, fiscalizando a atuação do Governo e da Administração Pública e com poderes para convocar testemunhas, requisitar documentos e realizar audiências públicas, mas não tem poder de decisão judicial.
O Inquérito Judicial é um verdadeiro procedimento conduzido pelo Ministério Público ou por um juiz, com o propósito de investigar crimes ou irregularidades específicas, com o objetivo de reunir provas para um possível processo judicial. Neste âmbito, os poderes são de autoridade para realizar buscas, apreensões, e outras diligências para a investigação que podem conduzir a acusações formais, processos judiciais.
Essencialmente, enquanto a CPI tem um carácter mais político e de fiscalização, o inquérito judicial é de natureza jurídica e de investigação, com o seu foco na aplicação da lei e na realização da justiça.
Adicionalmente, os inquéritos não são públicos, decorrem em segredo de justiça.
Mas as CIP são televisionadas.
As pessoas chamadas às Comissões Parlamentares de Inquérito, para colaborar, vez sim, vez sim, são os arguidos do Inquérito.
Como conciliar o segredo com o show mediático que rende tantas horas de esclarecimento em que os arguidos vão entregando e comentando de forma aberta e pública documentos que estão a ser investigados em segredo de justiça?
Poderá dizer-se que o tempo das CIP não deveria ser o do Ministério Público? Ou que as CIP não deveriam ter poderes tão abrangentes de forma a funcionarem como verdadeiros simulacros de julgamentos, ao jeito norte-americano, em que tantas vezes os senhores deputados interrogam, alegam, advertem e tentam até dirigir os trabalhos, congregando em si tudo e coisa nenhuma porque não terão poder de decidir nada.
E que dizer dos comentários que em bom rigor podem fazer perigar o princípio da presunção da inocência sempre que alguém que é arguido e está a ser investigado vai à CPI e não pretende responder?
Mas o caso das gémeas – que não se deveria nunca chamar caso das gémeas que nada fizeram de errado para ver recair sobre si o estigma de uma CPI – tem ainda o aspeto perverso de convocar a imprensa a tentar que o Presidente da República comente o que não pode comentar, atento o Princípio da Separação de Poderes.
Na verdade, em Portugal, onde há uma voracidade por alterar as leis mais rapidamente do que os disparos do cowboy Lucy Luke, não há a mesma inclinação para repensar as Comissões Parlamentares de Inquérito e, em calhando, era um dos casos em que fazia todo o sentido, em vez de produzirmos Comissões, em série, em grande parte para lamentar.